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Os símbolos nas armas e as armas como símbolos

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"A importância sócio-religiosa dos motivos decorativos nas armas indianas da colecção do Dr. Jorge Caravana"
 

Doutor Francisco Santos Silva

Traduzido do Inglês por: Dra. Vanda Noronha

Introdução

Enquanto se debruça sobre as armas brancas provenientes do subcontinente indiano, o investigador encontra frequentemente símbolos e elementos relacionados com a mitologia associada a Religiões Indianas. Isto é particularmente frequente no que diz respeito a armas que pertenceram a crentes de Religiões Indianas; armas brancas islâmicas, também frequentes numa área do mundo onde as classes governantes foram muçulmanas durante um longo período de tempo, apresentam principalmente elementos caligráficos e abstractos, em vez de imagens figurativas. No entanto, o propósito deste artigo é a exploração dos símbolos presentes em armas provenientes de comunidades inseridas no que é normalmente apelidado de “Hinduísmo”. O termo “Hinduísmo” é em si problemático, uma vez que apenas descreve as crenças e práticas religiosas dos habitantes da região para além do rio Indo. Na realidade, o “Hinduísmo” não pode ser considerado uma religião unificada e monolítica, sendo composto por uma miríade de diferentes expressões religiosas. Religião Védica, Śaivismo1Ao longo deste artigo, palavras de origem sânscrita serão transliteradas utilizando o systema IAST (International Alphabet of Sanskrit Transliteration ) e Vaiṣṇavismo são, por exemplo, formas religiosas distintas, e, como estas, muitas outras acabam por ser englobadas pelo termo, pouco exacto, de “Hinduísmo”. Sendo assim, é preferível então utilizar a denominação de Religiões Indianas, ou religiões nativas ao subcontinente indiano, substituindo portanto o termo “Hinduísmo”. Este termo foi claramente imposto exteriormente, como uma apelação fácil para várias crenças religiosas, pouco compreendidas por observadores externos até recentemente. Religiões Indianas, como termo geral, inclui assim também crenças religiosas originárias no subcontinente indiano, mas que são geralmente consideradas como exteriores ao chamado “Hinduísmo”, tal como Budismo e Jainismo. Estas estão, no entanto, intimamente relacionadas com outras Religiões Indianas no que diz respeito a filosofia e práticas religiosas, já que se desenvolveram num contexto social e intelectual semelhante às anteriores religiões pré-históricas da Índia. Este artigo procura assim explicar as razões para a presença dos símbolos encontrados mais frequentemente em armas brancas Indianas, explorar as armas e os símbolos em si, e também colocar estes símbolos num contexto filosófico e cultural que será pouco familiar para o leitor ocidental. Este artigo encontra-se então dividido em quatro secções: a primeira secção tem como objectivo modificar a perspectiva do leitor no que diz respeito à importância do tipo de armas discutido, inserindo-as num contexto cultural e religioso específico, uma vez que só compreendendo como armas brancas podem ser vistas não só como objectos bélicos, mas também como objectos de poder terreno e divino, poderá o leitor apreciá-las como objectos ligados à expressão religiosa. A segunda parte do artigo irá mostrar como as artes bélicas se podem inserir num contexto filosófico, através da explicação e desenvolvimento de conceitos como Dharma e Varṇas (ordens sociais) nas correntes de pensamento cultural e religioso indianas. A terceira secção irá explorar de forma mais detalhada os símbolos que mais frequentemente estão presentes em armas brancas, como a presença de deidades e símbolos faz sentido no contexto destas armas, o que estes adicionam as armas, e o que significavam para aqueles que as utilizavam. A última parte do artigo irá analisar peças específicas pertencentes à colecção do Dr. Jorge Caravana, desenvolvendo e ilustrando as secções anteriores. MODIFICANDO A PERSPECTIVA OCIDENTAL EM RELAÇÃO ÀS ARMAS INDIANAS Aquando do estudo e observação de armas, particularmente se estas forem ornamentadas, devemos vê-las não apenas como objectos bélicos, mas também como símbolos de status e riqueza. Armas muito ornamentadas teriam pouco uso em situações de batalha, sendo em vez disso envergadas pelos seus proprietários em situações onde a demonstração do seu status seria vantajosa, como em cerimónias ou eventos públicos, representando assim símbolos de poder e não de violência. De certa maneira, o leitor contemporâneo pode assim compara-las a acessórios de moda de valor financeiro elevado, tal como um colar de diamantes, servindo assim para ostentar um certo poder monetário, e reforçar a importância financeira e social de quem o usa. Por muito importante que estes símbolos representados nas armas sejam, como iremos ver mais abaixo, é essencial considerarmos a maioria destes tipos de armas como símbolos em si. Algumas armas ornamentadas poderão ter sido utilizadas num contexto bélico, mas armas dedicadas expressamente a esse propósito seriam normalmente simples e não decoradas, por razões práticas. Essa decoração iria provavelmente dificultar a função principal da arma, e armas primariamente bélicas sofreriam também danos e desgaste no campo de batalha. Para melhor compreender as razões porque uma arma é um tão poderoso símbolo de status na sociedade indiana, é necessário começar por examinar a estrutura social tradicional do subcontinente. A sociedade indiana é tradicionalmente dividida em quatro principais classes hereditárias (ou Varṇas), que são por sua vez divididas num elevado número de castas. O conceito das Varṇas data da pré-historia, estando patente no Ṛg-veda, o mais antigo texto sagrado Indiano, que foi propagado de forma oral antes de ter sido redigido, e que foi composto entre 1500 e 1200 AC (Flood, 1996, p.37). O Ṛg-veda descreve o desmembramento do Homem Cósmico (Puruṣa) e a criação das Varṇas a partir das diversas partes do seu corpo:

Os Brahman eram a sua boca Os braços tornaram-se o Príncipe, As suas coxas as pessoas comuns E dos seus pés os servos nasceram. [Ṛg-veda X, xc em Goodall 1996, página 14]

Este verso descreve sucintamente as quatro Varṇas e as suas respectivas funções; os Brāhmaṇa são os sacerdotes e professores, os Príncipes (Kṣatriya) os guerreiros, reis e administradores, enquanto as pessoas comuns (Vaiśya) são agricultores e comerciantes, e os servos (Śudra) seriam os serventes e trabalhadores braçais, a quem não era permitida a posse de bens imóveis (Klostermaier, 1994, página 334). Esta estrutura social, claramente definida, existe ainda hoje na vida indiana, e este demarcado sentido de hierarquia facilita a compreensão das razões pelas quais símbolos de status são tão importantes nesta sociedade. Das Varṇas descritas, a mais relevante para o contexto deste artigo é a dos Kṣatriya (guerreiros e príncipes); das quatro Varṇas, seria para quem as armas representariam e simbolizariam a sua posição social. Um Brāhmaṇa, Vaiśya ou Śudra não enquadraria um escalão social onde o uso de armas ornamentadas serviria como símbolo da sua linhagem e status social; na realidade, isso seria sim uma violação da estrutura social prevalente. O facto que esta estruturação da sociedade está já presente no mais antigo texto sagrado indiano não é acidental, uma vez que uma estrutura social específica tem sido uma das bases mais importantes para o desenvolvimento da religião indiana. Sociedade e religião estão intimamente ligadas em todas as culturas, mas o sistema de castas torna esta ligação particularmente evidente na religião do subcontinente. Uma arma é então um símbolo de filiação a uma classe hereditária, um símbolo não só da pessoa que a enverga num determinado momento, mas também da sua linhagem e história familiar. Alguém que possui uma arma muito ornamentada mostra mais que a sua riqueza; mostra também a sua linhagem, indica que é Dvija (nascido duas vezes), e que sendo assim não é Śudra (servo). Isto por sua vez determina com quem se pode relacionar, contrair matrimónio, ou até com quem pode estar sentado na mesma mesa. (Klostermaier, 1994, página 335) Neste contexto sócio-religioso, o portador da arma é então divinamente destinado a envergar a mesma, sendo que reencarnou numa família Kṣatriya devido ao seu valor e mérito. Tendo em mente a importância social e religiosa de pertencer a uma certa classe, torna-se mais fácil compreender porque é que símbolos tão fortemente indicativos da inclusão numa certa Varṇa (classe) ou Jat (casta) seriam então ornamentados com símbolos religiosos. Não devemos no entanto encarar isto como uma apologia religiosa da violência, mas sim como um decreto religioso de status. Armas indianas são em si simbólicas de um pilar desta sociedade, e, como tal, é incorrecto considerar estas armas como sendo apenas ou principalmente instrumentos de violência. O Kṣatriya é o defensor das outras castas – embora possa recorrer a actos violentos quando necessário, é preciso compreender que ele está autorizado a fazê-lo pela sociedade onde se insere e, no contexto das suas crenças religiosas, divinamente obrigado a fazê-lo. Isto não significa no entanto que estas armas não têm um componente bélico, mas que estas são envergadas por aqueles autorizados a cometer actos violentos sancionados pelo estado, ou seja, a classe guerreira. No contexto da Religião Indiana, armas têm assim uma carga simbólica que ultrapassa os símbolos que as adornam e o facto de serem instrumentos bélicos. Num contexto indiano, armas são elas mesmas simbólicas, reforçando o estatuto social de quem as possui, e a sua posição na estrutura religiosa do Universo. As armas são envergadas pelos mesmos membros que o Ṛg-veda descreve como dando origem aos Kṣatriya – os braços do Puruṣa (Homem Cósmico), símbolo da Humanidade, dão origem a uma classe de pessoas autorizadas a utilizar o poder de armas pelos seus próprios braços. GUERRA E RELIGIÃO INDIANA 31. [...] considera o teu próprio dever (de casta) (dharma) E não terás assim razão para temer; Pois algo melhor que uma batalha prescrita pelo dever Não existe para um homem da classe governante. 32. Felizes os guerreiros, deveras Que se envolvem numa guerra – Como esta, por puro acaso E que abre os portões do Paraíso! 33. Mas se não lutares nesta guerra Prescrita pelo teu dever (de casta), Então, por repudiares tanto a honra como o dever (de casta) Vais trazer o mal a ti próprio, 34. Sim, esta tua desonra tornar-se-á um provérbio Nas bocas dos homens em tempos que ainda virão; E desonra num homem treinado para honrar [é um mal que] ultrapassa a morte. (Bhagavadgītā, Chapter 2, 31-34 em Goodall 1996. página 214) O mais famoso texto religioso Indiano, dentro e fora da Índia, é o Bhagavadgītā, parte do antigo épico Mahābhārata. O Bhagavadgītā descreve uma discussão entre Kṛṣṇa, um avatar (encarnação terrena) do deus Viṣṇu, e Arjuna, um guerreiro que está prestes a batalhar contra membros da sua família e antigos professores. No fim do texto, Kṛṣṇa convence Arjuna que este tem de cumprir o seu dever como Kṣatriya, não porque a morte dos seus oponentes é algo desejável, mas porque Arjuna tem como destino e obrigação cumprir os deveres sociais e religiosos que tem como Kṣatriya. É então muito importante estar ciente do conceito de Dharma. Dharma é um termo de tradução difícil para Português, mas nesta citação é traduzido como “dever de casta”. Esta não é uma tradução exacta, mas no contexto do excerto será a mais adequada. Pode também, no entanto, significar “lei” ou mesmo “religião”; alguns Indianos utilizam a palavra Dharma quando se referem à sua própria religião. (Klostermaier, 1994, página 49) Dharma pode então ser definido sucintamente como:

os privilégios, deveres, e obrigações de um homem, o seu código de conduta como membro da comunidade Ariana, como membro de uma das castas, como uma pessoa numa etapa em particular da sua vida. (Kane, P. V. em Klostermaier, 1996, página 50)

A estrutura social e a prática religiosa são aqui tão interligadas que as palavras que significam dever social e religião são sinónimas – assim, quando é necessário que um Kṣatriya combata numa guerra, este está a cumprir os seus deveres sociais e religiosos. É então completamente justificado que instrumentos bélicos sejam adornados com símbolos religiosos, já que estes são também instrumentos com que o Kṣatriya irá cumprir o seu dever “religioso”, que é por sua vez dependente da sua classe social. O guerreiro indiano iria assim naturalmente associar os instrumentos da sua classe social com o deus ou deuses da sua devoção pessoal (bhakti). Tal como Arjuna irá utilizar o seu arco como sinal de devoção a Viṣṇu, através de Kṛṣṇa, também o Kṣatriya irá usar a sua paṭa, katar ou arco como símbolo de bhakti. O conceito de bhakti é essencial para compreender a razão que leva um guerreiro indiano a ornamentar uma arma sua com uma divindade. A palavra bhakti em si é etimologicamente difícil, mas uma tradução aproximada indicaria “amor” e “devoção” (Klostermaier, 1996, página 221) – neste caso, o amor e devoção que um crente sente pela figura divina de sua escolha. Bhakti representa assim uma relação mais próxima e pessoal entre o crente e a divindade, manifestada através de procissões, visitas a templos, festivais, oferendas e orações, comparáveis de certa maneira à devoção Católica por um Santo. Esta relação pessoal entre devoto e objecto de devoção apela à maioria dos crentes de Religiões Indianas, e, como tal, a maioria de Indianos é hoje em dia aderente de algum tipo de movimento bhakti. A devoção mais popular é a de Viṣṇu nas suas diferentes formas e avatares, nos quais estão incluídos Kṛṣṇa e Rāma. A esta segue-se a de Śiva, que inclui também devotos de membros da sua família, como Gaṇeś. O terceiro maior grupo de bhaktas consiste de seguidores de Devi ou Śakti, a Deusa nas suas diversas formas, sejam estas Kālī, Durgā ou Pārvatī. A colecção do Dr. Caravana inclui exemplos de todas estas maiores tradições bhakta, como irá ser explorado na quarta parte deste artigo. Para já, é importante sublinhar que a relação pessoal entre devoto e divindade é o que leva o Kṣatriya a escolher divindades específicas para ornamentar as suas armas. Estas armas tornam-se então não só um símbolo de estatuto social, como já foi descrito neste artigo, mas também uma maneira de expressar a devoção do guerreiro por uma divindade em particular. Estas armas, quando ornamentadas com as imagens ou símbolos de divindades, são assim mais que apenas um símbolo de poder e estatuto social, sendo também um símbolo de devoção pessoal a um ente divino. A imagem da divindade serviria também para abençoar a arma e aquele que a utilizava, invocando o poder da divindade para proteger e justificar as acções do possuidor da arma. A Religião Indiana está assim intimamente relacionada com as artes bélicas, não só através da sua filosofia, que justifica actos de guerra quando tendo em consideração obrigações sociais, mas também na ideia que deuses específicos de devoção pessoal seriam invocados para ajudar e suportar as acções de um Kṣatriya que utilizasse uma certa arma ornamentada. As noções de Varṇa e bhakti são assim essenciais para a compreensão da ideia de uma arma como símbolo em si. Na próxima secção, irá ser explorado o que cada deus significaria para um Kṣatriya pessoalmente e para os seus actos de guerra, explicando assim as razões porque essas divindades em particular estão presentes nas armas. Iremos também seguir as três divisões principais de bhakti já mencionadas no texto. ALGUMAS DAS DEIDADES MAIS FREQUENTEMENTE REPRESENTADAS EM ARMAS Nesta secção iremos então explorar as três principais tradições bhakta na Religião Indiana (Vaisnava, Śaiva e Śakta), descrevendo os símbolos que representam estas tradições, as razões porque estas divindades terão sido importantes para aqueles que as incluíram nas suas armas, o significado que transmitiriam a quem as visse, e como devem ser compreendidas no contexto contemporâneo. 1-Representações Vaisnava O grupo de deidades e seres sobrenaturais mais importante em termos de quantidade de crentes na Índia é o de seres relacionados com o deus Viṣṇu. Neste grupo estão incluídos não só o deus Viṣṇu, mas também os seus avatares terrenos como Rāma ou Kṛṣṇa, para além de seres associados com a sua mitologia, como Hanumān ou Garuda. A popularidade do culto de Vaisnava reflecte-se na frequência com que símbolos especificamente relacionados com esta tradição estão presentes nas armas brancas provenientes do subcontinente indiano. É assim importante compreender as razões porque seriam consideradas vantajosas as representações destes seres em armas, e o que significariam para o seu proprietário e para aqueles que observariam a arma. Viṣṇu, como deus conservador do Universo, é raramente representado em armas brancas, sendo as representações mais comuns e populares as de Rāma, o seu avatar terreno, e de Hanumān, companheiro deste. Ambos são personagens do Rāmayana, uma das mais populares narrativas religiosas, não só na Índia, mas também em locais onde a Religião Indiana chegou, como Bali na Indonésia. Como já foi explorado neste artigo, Kṛṣṇa é um avatar muito relevante para a compreensão das justificações bélicas de um Kṣatriya; Rāma, no entanto, geralmente retratado com um arco e flecha, tornou-se simbólico do rei perfeito, sendo assim a personagem ideal para um Kṣatriya com responsabilidades governamentais fazer representar num instrumento simbólico do seu poder. Hanumān, companheiro de Rāma e representado como um símio antropomórfico, é também frequentemente retratado em armas brancas. Neste caso, Hanumān não é símbolo de um rei perfeito, mas sim de um devoto (bhakta) perfeito, já que Hanumān era o companheiro perfeito de Rāma, que por sua vez é um avatar do deus Viṣṇu. Assim, o proprietário de uma arma com uma representação de Hanumān identifica-se como o perfeito devoto do deus Viṣṇu, ou, por extensão, o súbdito perfeito do rei perfeito. O simbolismo associado ao Rāmayana é portanto particularmente pertinente no contexto da retórica Kṣatriya. 2- Representações Śaiva Muito presentes na sociedade indiana estão também os Śaivas (seguidores de Śiva e de deidades e seres relacionados com este). O número de bhaktas de Śaiva é inferior apenas ao de Vaisnavas, e como tal é também frequentemente representado em armas Indianas. Ao contrário de imagens Vaisnava, que se focam principalmente em avatares que fazem parte de narrativas populares religiosas, representações Śaiva são mais centradas no próprio Śiva e nos seus familiares mais próximos. Śiva é um deus de contradições inerentes – é um deus visto como sendo destruidor, mas é também um homem de família, com a esposa ideal em Pārvatī, e dois filhos, Skanda e Gaṇeśa. Esta contradição torná-lo-ia assim o exemplo perfeito a emular para um guerreiro que é também um homem dedicado à sua família. Śiva é também, no entanto, algo mais; embora seja visto pela maioria de não–Śaivas como um deus destruidor, para Śaivas ele tem também o papel de criador e conservador do Universo. (Flood 1996, página 151). É por isso frequente encontrar Śiva representado em armas indianas, geralmente com o cabelo emaranhado de asceta, envergando um tridente como arma simbólica do seu poder. Os filhos de Śiva são também de particular interesse. Enquanto Gaṇeśa é um deus frequentemente invocado para auxiliar a superação de obstáculos (por exemplo, por estudantes em época de exames), Skanda é o deus bélico por excelência na religião tradicional indiana. Skanda é geralmente representado como um deus com vários braços, envergando várias armas. É interessante notar que Skanda é raramente representado em armas, mas que Parvani o pavão, o seu veículo e monta, é um dos motivos mais frequentes em armas indianas. Assim sendo, Skanda é frequentemente, se não explicita, implicitamente representado em armas indianas, e alguns exemplos de representações de Pravani podem ser vistas nesta exposição. 3- Representações Śakta Intimamente relacionadas com representações de divindades Śaiva, estão as representações Śakta de deusas em armas indianas. As tradições Śakta e Śaiva estão particularmente interligadas devido à ambiguidade sexual presente na tradição Śaiva, onde o deus é frequentemente representado como sendo parte homem, parte mulher. Śakti, ou a deusa, é também a “energia ou poder de Śiva” (Flood, 1996, 177). Tal como Śiva, Śakti é também uma deusa de contradições, sendo tanto a consorte e mãe ideal (Pārvatī, Laksmi e Sarasvati, por exemplo), a serena mas guerreira destruidora de demónios (Durgā) ou a figura violenta e terrível adornada com caveiras e membros decepados (Kālī). Pārvatī, Durgā e Kālī são frequentemente vistas como facetas diferentes do mesmo ser, a consorte de Śiva. É então natural que se encontrem em armas representações dos dois últimos exemplos de Śakti. Durgā tem como monta um leão ou um tigre, e enverga armas nas suas dez mãos, simbolizando poder bélico na causa da justiça como destruidora de demónios, sendo assim apropriado representá-la em armas. Já Kālī é uma deusa terrível, e é também a destruidora do demónio Raktabija, sendo frequentemente representada depois da morte deste, dançando sobre os corpos daqueles que pereceram no campo de batalha. Kālī é mais especificamente retratada dançando sobre o corpo do seu consorte Śiva, o que representa a deusa transmitindo poder (ou Śakti) para Śiva, reforçando assim a ideia de que ela é a energia de Śiva. É fácil compreender como estas deusas, repletas de poder e matando demónios por causas justas, inspirariam assim os possuidores das armas que as utilizam como símbolos. Iremos então agora explorar exemplos específicos de símbolos indianos relacionados com estas tradições em peças da colecção do Dr. Jorge Caravana.

TRÊS EXEMPLOS DE SIMBOLISMO RELIGIOSO INDIANO NA COLECÇÃO DO DR. JORGE CARAVANA

Nesta secção as conclusões previamente atingidas serão inseridas numa perspectiva microcósmica, através da análise de três peças em particular, pertencentes à colecção do Dr. Jorge Caravana. Iremos assim examinar peças que contêm elementos relacionados com Religião Indiana, mas não exclusivamente de origem indiana, sendo as peças um Kris Balinês, e um Katar e Dhal (escudo) indianos. Nestas três armas encontram-se exemplos dos cultos Vaisnava, Śaiva e Śakta, respectivamente, havendo assim uma variedade interessante de simbolismo. 1.Kris Balinês A primeira arma é um Kris proveniente de Bali, uma das ilhas da Indonésia, onde a maioria da população pratica Religiões Indianas e onde, tal como na Índia, Vaisnava é o culto devocional prevalente. Esta é uma arma muito ornamentada, que retrata na sua bainha cenas do Rāmayana, épico particularmente popular em Bali onde teatros de sombras frequentemente encenam cenas dessa narrativa. O principal elemento de foco na decoração aparenta ser Hanumān, que serve também como punho do Kris. Hanumān é facilmente reconhecido pelos seus dentes revirados, visíveis por cima do seu lábio superior. Nas cenas apresentadas na bainha, Hanumān é retratado com Rāma, envergando com uma coroa alta, e, no painel superior, um arco e flecha. Hanumān é aqui representado como companheiro, auxiliando Rāma a atravessar um corpo de água transportando-o nas suas costas, ajudando a reavivar Lakṣmaṇa (o irmão de Rāma, representado sem coroa) depois de uma batalha no terceiro painel a contar de cima, e participando numa caça com Rāma no painel superior. Na parte de trás do Kris, o painel superior retrata Hanumān transportando Lakṣmaṇa e Rāma sobre o mar. Este foco central em cenas do Rāmayana que incluem Hanumān, e não outras personagens igualmente importantes como Sītā, esposa de Rāma, ou Rāvaṇa, o vilão da história, parece apontar para uma identificação entre o possuidor da arma e o deus-macaco. As possíveis razões para isto serão variadas – tendo em conta as cenas de caça e de batalha retratadas na arma, uma hipótese provável será que o seu proprietário tinha uma posição próxima do seu governante, algo que faz sentido se considerarmos a riqueza da arma em si. O dono da arma identificaria então Rāma, como o soberano perfeito que ele veio a representar, com o seu próprio soberano, identificando-se então a si próprio com o infatigável e eternamente devotado companheiro desse rei. Hanumān é também, no entanto, simbólico de devoção profunda em termos religiosos: como Hanumān é devotado a Rāma, um avatar de Viṣṇu, também o crente deve ser devotado ao seu deus. Sendo assim, a razão para a existência desta arma com este simbolismo em particular poderá simplesmente ser uma maneira do seu proprietário se mostrar como um profundo devoto religioso. No entanto, a hipótese de esta ser uma arma pertencente a alguém próximo a um soberano é suportada pelas cenas escolhidas pelo artista, assim como pela escolha de Hanumān como o deus central desta peça. 2.Katar Indiano A segunda peça aqui examinada é um bom exemplo das fronteiras ténues entre os cultos Śaiva e Śakti. Este Katar contém duas representações, uma de Śiva e outra de Kālī, em lados opostos da lâmina e preenchendo quase completamente a sua superfície. O facto que ambos ocupam a mesma área é interessante de um ponto de vista religioso, mantendo também assim a simetria da arma. A posição igualitária em que Śiva e a sua consorte – na sua aparência mais feroz, como Kālī – se encontram é compreensível, sendo que, como referido previamente, Śakti é o poder e a energia de Śiva, e é através dela que este é um ser tão poderoso. A representação das personagens não é a usual, mas as suas identidades são claramente reconhecíveis através de vários elementos que lhes são específicos. Śiva apresenta-se envergando as roupas de um asceta e adornado com cobras, ambos elementos que o identificam como sendo Śiva e não outro deus. Outro elemento reconhecível encontra-se na saliência no topo da sua cabeça, que embora se assemelhe a uma cobra, é na realidade o rio Ganges, frequentemente representado como saindo do topo da cabeça de Śiva, num simbolismo fálico que é ecoado no culto do Śiva Lingam (altar de Śiva de forma fálica). Kālī é também facilmente reconhecida pelo tridente, que é a arma do seu consorte, a sua nudez e a cabeça decepada que ostenta na mão. Estas características tornam impossível esta figura ser Durgā ou Pārvatī. Embora Kālī não esteja a ser representada dançando no corpo de Śiva, ela está no entanto por cima dele na lâmina da arma, e a sua união é, mais uma vez, uma representação da transmissão de poder da deusa para o deus, e de ambos para o devoto que possui a arma. 3. Dhal Indiano A última peça é um Dhal (escudo), onde as referências são especificamente relacionadas com o culto de Śakti, especificamente com o de Kālī. Através da interpretação dos símbolos presentes no Dhal, podemos inclusive chegar a uma origem geográfica e cronológica: as cenas retratadas são situadas em Bengal, mais especificamente no Templo de Kālī em Dakshineswar, Kolkata, numa noite de Lua Nova. É imediatamente aparente que este é um escudo pertencente a um devoto de Kālī, sendo que a deusa está presente nos painéis exteriores ostentando duas cabeças decepadas nas mãos e, num dos casos, duas espadas. Existem várias cenas de caça nos painéis exteriores e interiores, sendo estas principalmente decorativas e sem simbolismo específico. O painel central, no entanto, revela outras pistas. Os bodes em frente ao templo sugerem sacrifícios a Kālī, e considerando as despesas inerentes à manufactura de um escudo como este, será provavelmente um templo de grande importância. O Templo de Kālī em Dakshineswar foi construído em 1855, o que é coerente com a idade do escudo, e tornou-se, desde então, um dos mais famosos templos de Kālī na Índia. Tal como é representado no painel central do escudo, tem três torres centrais e uma de cada lado. Bodes são sacrificados em honra de Kālī num festival mensal na noite mais escura do mês. (Harding, 1998, página 117). As bandeiras no templo representado no escudo indicam claramente uma ocasião festiva, e os dois bodes o sacrifício mensal. Podemos assim concluir que o escudo pertencia a um devoto de Kālī com especial devoção por este templo, e é inclusivamente possível que o escudo tenha sido manufacturado por volta da data de fundação do templo, com a intenção de ser um escudo cerimonial ou festivo.

CONCLUSÃO

A informação que pode ser inferida através da observação de armas indianas ornamentadas é essencial para compreender a importância da arma para além do seu uso como instrumento bélico, nomeadamente no que diz respeito a crenças, estatuto social e sentimentos do proprietário original da arma, assim como que imagem este pretendia projectar para aqueles que o observavam a envergar essa mesma arma. Como já foi referido, através de uma interpretação informada dos símbolos representados nas armas, o investigador poderá chegar a conclusões indicativas de origem geográfica, de quem encomendou a sua manufactura, e discernir a sua idade. Isto torna a interpretação de símbolos tão importante para a compreensão da proveniência de uma arma como é a compreensão dos materiais e estilos artísticos e técnicos utilizados na construção da mesma. A integração de uma arma em particular num contexto social e religioso permite também ao observador ocidental uma melhor compreensão da importância da arma em si, não só para aqueles que a encomendaram e utilizaram, mas também do seu valor como um artefacto histórico, documentando as crenças e práticas de membros da Varṇa Kṣatriya nos últimos séculos. Isto adiciona um nível de importância e interesse às armas em si, tornando-as assim relevantes como documentos históricos e antropológicos. Isto é uma dimensão que uma examinação superficial destes artefactos pode não atingir se o observador não estiver ciente das implicações sócio-religiosas do que está a observar. Este artigo procurou assim despertar o interesse nos aspectos sócio-religiosos das armas indianas naqueles que possam estar principalmente interessados nas suas vertentes estéticas. O que este artigo tentou assim fazer por armas integradas num contexto religioso indiano poderá igualmente ser feito por armas Japonesas, do Médio Oriente ou Mogóis, entre outras, as quais, tal como armas ocidentais, guardam em si símbolos que nos ajudam a compreender o contexto da sua origem. A compreensão da importância multifacetada das armas indianas aprofunda o seu fascínio e re-contextualiza a sua apreciação, revelando-as não só como belos instrumentos bélicos, mas também como importantes artefactos históricos, que fazem, sem dúvida, parte do património comum da Humanidade.

BIBLIOGRAFIA

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